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VOCÊ NÃO PRECISA SER UMA PESSOA BOA

Marina Galvão
5 min readSep 6, 2021

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Em fevereiro deste ano me inscrevi em um curso do Charles Eisenstein chamado Unlearning for change agents (“Desaprendizagem para agentes de mudança”).

Decidi fazer esse curso por alguns motivos, dentre eles a palavra “ desaprender “.

Em primeiro lugar porque tenho estudado e trabalhado em projetos de consultoria envolvendo a aprendizagem; em segundo lugar, porque me pareceu um tanto irreverente um convite para aprender que passa pelo desaprender; e, em terceiro lugar, pelo motivo mais relevante: a minha intuição.

O autor Malcolm Gladwell afirma que fazemos todas as nossas escolhas em um piscar de olhos. Só que queremos trazer racionalidade para essas escolhas, alcançar razões lógicas que as justifiquem, e acabamos complicando demais a maioria de nossas decisões.

Bom, tomei essa decisão. E o que aconteceu ao longo do curso foi o que muitas vezes acontece quando nos envolvemos em algo que não entendemos exatamente a proposta, mas que nos sentimos “chamados” a participar: não foi nada do que eu esperava, mas foi tudo que eu precisava.

Partindo de uma base teórica profunda, o curso faz um convite constante a revisitar e desaprender os nossos padrões de pensar e agir através de simples desafios semanais.

Nessa jornada uma das aulas foi especialmente revolucionária pra mim, pois me colocou frente a frente com uma questão muito interessante: o autojulgamento e a autojustificativa.

Para o julgamento “externo”, ou seja, o julgamento que fazemos dos outros, das situações e do mundo, eu já venho trazendo atenção e questionamento há alguns anos. Escrevi algumas reflexões sobre isso aqui. Mas descobri que não havia me aprofundado o suficiente a respeito do julgamento “interno” e, com o curso, consegui mergulhar um pouco mais nessas questões e perceber pontos cegos e pontos de conexão.

Compartilho aqui algumas reflexões:

Nós estamos constantemente nos julgando e autojustificando as nossas pequenas — e grandes — escolhas.

Seja para nos crucificar, seja para nos vangloriar, tem sempre uma conversa interna acontecendo dentro da nossa mente. E o que eu percebo é que a “régua” com a qual julgamos o mundo, costuma carregar a mesma “rigidez e extensão” com a qual nos julgamos nós mesmos.

Esse “julgamento interno” não acontece só nos momentos em que erramos ou quando estamos conscientemente querendo “ser melhores”. Ela acontece todos os dias, o tempo inteiro.

É como se houvesse um duelo interno entre o bem e o mal, o justo e o injusto, e tantas outras conhecidas polaridades morais.

Sabe aquelas situações em que você tem que tomar uma decisão, e decide não ser a “melhor pessoa” que julgaria poder ser? Por exemplo, eu decido repetir um pedaço de bolo e comer a última fatia, mesmo sabendo que não vai sobrar para o meu colega de trabalho que ainda não comeu nenhuma.

E aí começa um julgamento:

- Nossa, que horror! Eu sou uma pessoa muito egoísta! Vou comer a única fatia de bolo que sobrou!

E uma autojustificação:

- Ah, mas da última vez fui eu que fiquei sem, né?

- Eu acho que mereço, porque trabalho mais que todo mundo nessa equipe

- Acho que é justo eu comer, porque afinal fui eu quem buscou o bolo

E ai, internamente, eu posso concluir:

-Está tudo bem! Eu sou uma pessoa boa, o certo é eu comer e isso está justo.

O que acontece é que na prática você comeu a última fatia do bolo. Alguém poderia te julgar como egoísta, mas desde que você encontre os motivos internos para não se julgar assim, você age da forma que deseja.

Na realidade, muitas vezes tomamos uma decisão e, posteriormente, encontramos os motivos e as justificativas internas para reforçar aquela decisão, ou seja, apenas encontramos argumentos para as decisões que já tomamos.

Cultivamos hábitos de autoavaliação, justificação, autocondenação e autoelogio condicional. E quando trazemos consciência para isso e buscamos interromper o autojulgamento moralmente construído — culpas e elogios — conseguimos começar a acessar a verdadeira origem de nossas escolhas.

Experimente fazer isso! Observe a conversa interna que acontece dentro de você e perceba de quais justificativas você dispõe para se autoavaliar. Depois, dê um passo além: tente abrir mão delas.

Mas, lembre-se: a intenção não é substituir auto-julgamentos negativos por afirmações. A intenção é deixar de se auto justificar, deixar de afirmar internamente que você está certo, ou de reforçar o quanto que você é uma pessoa justa e boa.

À primeira vista pode parecer contraditório: afinal, não devemos buscar ser “pessoas melhores” a cada dia?; evoluir em nossas questões e questionamentos? Mas o convite não é para desaprender isso.

O convite passa por parar de se justificar internamente para poder realmente ser aquilo que somos e assumir as escolhas que tomamos.

O convite é para deixar de lado a autojustificação: deixar de lado o hábito de narrar suas ações de uma forma que faça com que você seja uma pessoa boa e esteja certo por ter agido da forma que agiu.

Isso não significa que você deva ignorar os impulsos que você teve, as causas e as razões do porque você faz as coisas. Mas você não as internaliza.

De acordo com Charles Eisenstein, o que acontece é que essa “guerra contra si mesmo” acaba sequestrando os nossos melhores impulsos: nosso altruísmo e nosso desejo de servir. E acabamos nos tornando servos da nossa autoimagem ao invés de servir a alguma espécie de mudança que gostaríamos de ver no mundo. (tradução livre)

Portanto, conseguir deixar isso de lado é uma prática muito poderosa.

Retire o merecimento da equação, retire os vilões e os bonzinhos, retire a dívida e o senso de vingança, retire os elogios e a moralidade. O que permanece? Qual história você passa a contar para você mesmo(a)?

Perceba se acontece alguma mudança na forma pela qual você avalia a atitude dos outros. Perceba se o julgamento “externo” — aquele que você entrega para o mundo e para as pessoas ao seu redor — muda.

Perceba que se você se considera uma pessoa boa porque teve a atitude A ou B, e a outra pessoa não agiu assim, então fica fácil julgar que você ocupa um lugar de “superioridade”, ou que ela não é uma “pessoa boa”. E isso não é verdade.

Perceba você mesmo(a). Quando você busca se desvincular dessa medição, quando você deixa de se avaliar com base em uma imagem projetada, quando você descobre quais são as suas condicionantes de aprovação e julgamento, você consegue caminhar no sentido de realmente aceitar a si mesmo(a).

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[ Artigo da série Retrospectiva 1º semestre 2021 || Esse texto foi construído com pensamentos e reflexões que emergiram em mim após realizar o curso do Charles Eisenstein chamado Unlearning for change agents]

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Marina Galvão

Facilitadora e Consultora // Apaixonada por interações sociais e por experiências de aprendizagem / Pensadora livre que não se satisfaz com explicações simples.